O menino afegão, os Saltimbancos e eu!

A pureza infantil não viu as barreiras impostas pela cultura e pelo idioma. Só queria se comunicar!

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Durante alguns dias trocamos olhares. Nossa relação se resumiu a alguns encontros nas áreas comuns do hostel, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Aos poucos, um joia com o polegar quebrou o gelo. Ele retribuiu. Primeiro contato real. A partir daí, os olhares já eram menos desconfiados e cada vez mais curiosos. Os polegares já apontavam pra cima ao me ver, e um sorriso tímido teimava em escapolir pelo canto da boca.

Com o passar dos poucos dias, acabamos criando um laço distante, um contato que eu também não sabia até onde seria possível sem invadir a cultura daquela família tão diferente. Em um momento de distração minha ele chegou me dirigindo a palavra. Impossível não olhar com certo espanto, afinal a família se manteve respeitosamente interagindo o necessário no hostel, mas sem grandes contatos e trocas. Não sei se pela cultura diferente, pelo idioma ou pela soma de tudo.

Ele estava ali do meu lado, pedindo atenção. Tentei com as mãos indicar que eu não entendia o que ele falava, mas ele me ignorava. Apelei para a tecnologia mas, pela expressão no seu rostinho, a frase “Não entendo o que você fala” em tradução livre para o afegão pelo Google Tradutor, não fez muito sentido.

Decidi ouvir, mesmo sabendo que nem o contexto eu entenderia. A curiosidade falou mais alto e fui até o pai para que ele me traduzisse em inglês o que o garoto falava. Todo orgulhoso dizia que filho estava apontando o “computador que era igual ao do pai.”

Com ajuda do pai, tivemos nosso primeiro papo. Era o aval que ele precisava. Garoto safo! Nem 10 minutos depois que saiu com o pai, já estava sob a mesa interagindo com aqueles olhos curiosos, esperando só uma troca para começar um novo papo.

No momento em que ele puxou meu fone de ouvido, pedindo minha atenção, não resisti. Precisava me comunicar com ele de alguma forma. Algo que fizesse sentido pra ele independente do idioma.  Saltimbancos! A primeira coisa que me passou pela cabeça.

Algumas tentativas só com o áudio. Não pareceu agradar tanto. Foi quando lembrei de “Piruetas”, clássico de Os Saltimbancos Trapalhões. Bingo. A imagem completou a história na cabecinha dele.

O riso a uma altura dessa não era nada tímido e já escapava sem receio. Os olhos acompanhavam cada pirueta, cada tombo. Nosso olhar de cumplicidade entregava: estávamos nos entendendo e rindo juntos.

Daria tudo para saber que história ele estava entendendo, hipnotizado pela gata (Lucinha Lins) e principalmente soltando gostosas gargalhadas com a galinha (Zacharias).

Quando acabou, o olho dele me pedia mais. Coloquei o filme completo e deixei ele lá, com aquelas cores, cenários, palavras e sons completamente novos.

Fiquei de longe. Fui conversar com o pai, explicar que era um filme da minha infância. Ficou por lá uns 20 minutos, quase sem se mexer. Atento. Resolveu sair, tirou os fones, passou por mim e falou alguma coisa. Apelei novamente ao pai: “Ele disse obrigado”.

O olhar daquele menino afegão, quebrou barreiras geracionais, de cultura e idioma, de maneira rápida e doce, foi uma das coisas mais lindas que me aconteceu no início dessa minha jornada chamando hostels de casa, que já dura seis anos.

Esse é o primeiro texto desse novo espaço do Brasil Hostel News, em que eu vou escrever mais em primeira pessoa, compartilhando um pouco das histórias que guardo na memória e em algumas anotações, dessa minha vida de hostel. Essa aconteceu lá em 2015, em um momento de encantamento com esse estilo de vida e suas possibilidades.

Embarque comigo!